Feeds:
Posts
Comentários

Posts Tagged ‘josé saramago homem duplicado literatura portuguesa’

enquanto voltava pela estrada num fim de tarde chuvoso até Porto Alegre, terminei de ler O Homem Duplicado, de José Saramago. A leitura, que em princípio parecia lenta e enrolada, surpreendeu-me: a ação presente na segunda metade do livro fez com que o devorasse em bem menos das cansativas 4h30min de viagem.

não, não se trata de um livro ímpar como Ensaio sobre a Cegueira. Mas é excelente e conseguiu com que eu não desgrudasse dele desde o momento em que li a primeira página. No entanto, ao contrário de Ensaio…, O Homem Duplicado pareceu-me uma excelente história para virar roteiro de cinema. Sim, acredito que muitos já saibam, mas não custa repetir aos mais distraídos: o brasileiro Fernando Meirelles está filmando Blindess, filme baseado em Ensaio. Com o aval do próprio autor. não gostei de saber disso; o livro é completo por si só e qualquer tentativa de cinematografá-lo parece fadada ao fracasso – ou no máximo, a um comentário do tipo “ficou bonzinho, mas não está à altura da obra original”.

Aos curiosos e interessados, o Meirelles dispõe de um blog bastante interessante sobre o to do de Blindness. O legal foi que ele pensou em um casal em particular como dois orientais. na minha imaginação de leitora, além de eles parecerem mais velhos, definitivamente não tinham os olhos de risquinhos que gosto tanto.

Bem, voltemos a O Homem Duplicado, que conta a história de um comum professor de História chamado Tertuliano Máximo Afonso. Divorciado e sem muitas distrações, ele aceita num dia a sugestão de um colega – que aqui só é conhecido como o professor de Matemática do colégio onde Tertuliano trabalha – de assistir a um filme comum, uma comediazinha que rende-lhe poucas risadas. Porém, um ator de segunda impressiona Tertuliano: é simplesmente sua cópia fiel. Mesmos trejeitos, voz, aparência, tudo em um é igual a outro, como gêmeos siameses. A partir daí, o professor de história fica obcecado e resolve descubrir a identidade de seu duplicado. Nessa saga até o encontro final dos dois iguais, muita água passa sob a ponte. Conforme a busca pelo ator segue, a tensão cresce – até chegar a um ponto onde parece que tudo se acalma. Ledo engado, pois é aí que a história fica de fato instigante. Não pretendo contar muito para não estragar a surpresa para futuros leitores, mas o final lembrou a categoria dos melhores contos e histórias de suspense e terror. Um certo quê de Stephen King, mas com muito mais profundidade e questionamento, com certeza. Eis das várias passagens interessantes da obra:

“Desprenderam-se devagar, ela sorriu um pouco, ele sorriu um pouco, mas nós sabemos que Tertuliano Máximo Afonso tem uma outra ideia na cabeça, que é retirar das vistas de Maria da Paz, o mais depressa possível, os papéis reveladores, por isso não se estranha que quase a tenha empurrado para a cozinha, Vai, vai fazer o café enquanto eu dou uma arrumação a este caos, e então aconteceu o inaudito, como se não desse importância às palavras que lhe saíam da boca ou como se não as entendesse completamente, ela murmurou, O caos é uma ordem por decifrar, Quê, que foi que disseste, perguntou Tertuliano Máximo Afonso, que já tinha a lista dos nomes a salvo, Que o caos é uma ordem por decifrar, Onde foi que leste isso, a quem o ouviste, Ocorreu-me neste momento, não creio que o tivesse lido alguma vez, e, ouvi-lo a alguém, isso tenho a certeza que não, Mas como foi que te saiu uma frase dessas, Que tem de especial a frase, Tem muito, Não sei, talvez fosse porque o meu trabalho no banco se faz com algarismos, e os algarismos, quando se apresentam misturados, confundidos, podem aparecer como elementos caóticos a quem não os conheça, no entanto existe neles, latente, uma ordem, na verdade creio que os algarismos não têm sentido fora de uma qualquer ordem que lhes dê, o problema está em saber encontrá-la, Aqui não há algarismos, Mas há um caos, foste tu mesmo que disseste…”

Realmente gostei de O Homem Duplicado. Não é, com certeza, a obra-prima de Saramago, mas tem o mérito de utilizar uma situação insólita, levando-a a níveis extremos de esquizofrenia e dúvida. Merece destaque na minha biblioteca como uma obra a ser relida, reavaliada e recomendada aos amantes da boa literatura. Só falta-me agora comprá-lo, pois o que li era emprestado de um colega do jornal.

Read Full Post »